"Não fazia calor naquela tarde. Ainda sob uma luz dócil de
outono, eu caminhava pela beira-mar sem pressa. Havia saído com bastante
antecedência, e mesmo sabendo que chegaria antes da hora marcada, não tinha
planos de antecipar nosso encontro.
Foram muitos anos de conversa desde quando nos apresentamos
e, de alguma maneira, surgiu um interesse discreto, mas determinado. Eu não
seria capaz de antecipar nem um minuto, e usava o tempo extra para pensar nas
minhas escolhas, e no quanto representava para mim cada passo que eu andava
naquela direção. Ainda estava a sós àquele momento.
Cheguei pontualmente na hora marcada, e fui tomado por uma
sensação de intimidade, como se há muito tempo frequentasse aquele lugar. Fui
privado da visão logo ao chegar, e eu parecia saber disso: meus olhos
mantinham-se fechados naturalmente. A privação da visão amplificava os demais
sentidos e tudo parecia tocar-me mais a fundo. Senti-me vulnerável, mas não
ameaçado. Entregue, mas não suicida.
Seu interesse pelo meu corpo era a chave para as descobertas
que se iniciavam ali. Eu não sabia aonde ir, o que fazer, o que sentir... era
um ato voluntário de entrega, e ele tinha uma clareza muito grande disso.
Através do meu corpo ele alcançou a minha dor, e na minha
dor nós dois nos encontramos em festa. Ele me açoitava e eu me contorcia, dor e
prazer ocupavam juntos todos os espaços daquele primeiro encontro, em silêncio.
Pouco conversamos. Não por falta de afinidades, mas porque muito
já havia sido dito e sobretudo porque sabíamos o quanto o silêncio nos permitia
realçar os sentidos mais profundos naquela hora. Ele, metódico. Eu, pontual.
Assim repetiríamos mais dois dias o nosso encontro, no mesmo local e mais ou
menos no mesmo horário, mas com conteúdos diferentes.
Estávamos unidos por um laço. Era mais um estreito nó que um
laço frouxo. E o calor dele me incendiava. Ele cantou e sua voz o agigantava.
Juntos, parecíamos, leves, a flutuar.
O encontro entre Dominador e submisso estava configurado.
Levamos o bdsm de nós dois a circular entre bares, ruas, parques e amigos. Era
preciso levar para a vida lá fora, sem desperdiçar minuto sequer, tudo o que
havíamos construído para nós.
Foi difícil entrar num carro e perdê-lo de vista numa
esquina virada à esquerda. A liberdade parecia estar ali, entre nós, na
entrega. Assim como o prazer estava ali, na minha dor, explorada e exposta sem
cerimônia, entre garrafas vazias e sentimentos transbordados. Foi um encontro,
mas poderia ter sido uma apneia: mergulho fundo, muito profundo, mas com hora
marcada para voltar à tona.
A maior dor, dentre todas, foi despertar a sós na manhã
seguinte. Inerte na cama, por longos minutos desejei que não fosse verdade o voo
que me levaria para longe dali. Eu queria prolongar aquele momento, levar
comigo o bom da dor. Tantos anos de desejos a afinidades revelados como a fazer
planos, não mereciam terminar ali. Não me parecia justo um fim tão próximo do
começo. Nada parecia mais justo que um longo meio entre o princípio e o fim.
E eu quero acreditar que o afastamento inevitável seja o meio,
porque eu sempre me recuso ao fim precoce do que me faz bem.
Há situações que ficam para sempre, há portas que jamais se
fecham, há dias em que ganhamos uma vida inteira. Estou, agora, mais livre. E
por isso mais seu.
Só quem é livre pode entregar-se, meu amigo, meu algoz, meu
Senhor."
QUER CONTRIBUIR FINANCEIRAMENTE PARA QUE O BLOG CONTINUE ATIVO E COM POSTAGENS SEMANAIS?
ENTRE EM CONTATO ATRAVES DO E-MAIL
propriedadedomestre@hotmail.com E INFORME-SE.
FORTE ABRAÇO.
MESTRE M
0 comentários :
Postar um comentário